"BRINCADEIRAS TRADICIONAIS DA REGIÃO AMAZÔNICA"
A dança da carochinha As brincadeiras de roda, cada vez mais raras no universo infantil dos grandes centros urbanos, ocupam um espaço muito importante no repertório lúdico popular brasileiro. Fazem parte das chamadas brincadeiras tradicionais que, passadas de pai para filho, carregam fortes traços culturais característicos da região de origem. Pequenos vilarejos e comunidades ribeirinhas da região Amazônica são, ainda hoje, berço de inúmeras brincadeiras desse gênero, que constituem a principal atividade infantil local. Muito além das belas paisagens formadas por exuberantes florestas, a região apresenta uma riqueza lúdica muito própria, intimamente ligada ao modo de vida simples da população, que sobrevive da pesca, da caça e do extrativismo, na sua maioria. Em visita à Amazônia há dois anos, a educadora Renata Meirelles Dias de Carvalho, especializada em Arte e Educação, percebeu que a região apresenta um riquíssimo potencial lúdico-cultural. "Eu acho que falta para a criança urbana um espaço real de brincadeira, onde ela possa se expressar com seus amigos, trazer a magia, o simbolismo", analisa. Na sua opinião, a criança moderna está sendo constantemente treinada para encarar a vida adulta, sofrendo um bombardeio de informações. As brincadeiras tradicionais, pelo contrário, têm o propósito único de brincar, permitindo a exploração e o prazer tão característicos da infância. Há 6 anos pesquisando brincadeiras e jogos populares, Renata decidiu então realizar uma pesquisa aprofundada na Região Amazônica, criando o projeto BIRA (Brincadeiras Infantis da Região Amazônica). Desde o início de julho, a educadora, juntamente com o cinegrafista norte-americano Joseph Reeks, tem percorrido a região, visitando comunidades ribeirinhas e populações indígenas. A idéia é estabelecer um intercâmbio lúdico com as mais variadas populações, trocando repertórios de brincadeiras e documentando as atividades com fotos e vídeo. Para Renata, a troca é muito importante: "Nós estamos aqui para aprender com eles, é muito mais forte do que só trazer a nossa cultura, diversa." O arquipélago do Bailique, situado na face leste do Amapá, foi definido como ponto inicial do projeto. São mais de 38 comunidades espalhadas por 8 ilhas, num total de 5000 habitantes (veja quadro ao lado). Durante 15 dias, a equipe do Bira desenvolveu o seu trabalho na região, concentrando-se em duas vilas - a Macedônia, com 300 habitantes, e a Livramento, com 97. Como brincam as crianças do Bailique Localizadas à beira do rio, as casas de madeira enfileiradas sobre passarelas de palafitas servem de moradia para uma população com fortes valores morais, em que predominam o senso de comunidade, de religião e de tradição. Todos os aspectos do cotidiano estão intimamente ligados aos recursos naturais, fonte de alimento, madeira para a construção de casas, produtos para comercialização e matéria-prima para a confecção de artigos artesanais, estabelecendo um ritmo de vida determinado pela natureza.As atividades infantis não escapam à influência dessa organização social, e guardam fortes traços dos costumes locais. "A maioria das brincadeiras que eu sei, aprendi aqui mesmo, com as crianças e os adultos", afirma Keliane Barbosa, 13 anos, moradora da Vila Macedônia. Por serem transmitidas dessa forma, as brincadeiras têm um forte sotaque regional, como é o caso das cantigas de roda, recheadas de nomes de frutas e animais da região, além de referências a aspectos da vida cotidiana - pedir a bênção à avó e dormir na rede, por exemplo. (veja quadro ao lado). Além das brincadeiras de roda, as crianças se dedicam a inúmeras outras atividades tradicionais, como a cama-de-gato, o bole-bole - em que cada um do grupo sentado em círculo tem a sua vez de jogar algumas pedras para cima e tentar apanhá-las com as costas da mão - e as brincadeiras de mão - em que se bate palmas, acompanhando uma cantiga. As crianças costumam, também, fabricar os próprios brinquedos, como explica Isaías de Souza Pimentel, 24 anos, criado na Vila Macedônia. "Eu sonhava ter um brinquedo desses a pilha, mas meus pais não podiam me dar. Então, eu ia para a mata e fazia meus próprios brinquedos com os recursos de lá". Dentre esses brinquedos, o mais popular é o corrupio, uma espécie de pião feito com um fruto redondo e preto chamado buçu, atravessado por uma vareta de madeira. Também são muito comuns os aviões e barcos confeccionados pelas crianças com cortiça, uma madeira clara e levíssima. A espingardinha de taboca (ou bambu), arma para guerras que duram por horas a fio, também é totalmente natural: dentro de um pedaço de bambu oco, colocam-se duas porções de papel molhado, uma na ponta e a outra no meio do cano. Com uma vareta de madeira, empurra-se a porção que está no meio de modo que ela exerça pressão sobre aquela que está na ponta, impulsionando-a num "tiro". Os jogos praticados nas porções desmatadas de terreno, como a bandeirinha e o tacobol, estão longe do estigma competitivo que os acompanha nos grandes centros urbanos, sendo influenciados diretamente pelos valores de união, religiosidade e respeito - não há brigas, e é muito raro ouvir alguém falando palavrão. Resgatando a cultura infantil popular Expressão da infância dentro do contexto de uma vida em comunidade, esse vasto repertório lúdico corre o risco de se perder com o tempo. Assim, um dos principais objetivos do projeto é a valorização da riqueza lúdica regional pela própria comunidade, num trabalho de resgate da cultura através da brincadeira infantil. "Na Vila Macedônia, por exemplo, nós soubemos que a perna-de-pau estava deixando de existir, então fomos atrás, pedimos que nos mostrassem como era feito, resgatando uma brincadeira que estava se perdendo".Para que esse resgate seja o mais fiel possível, o BIRA busca registrar as atividades sempre dentro do contexto humano em que ocorrem. Por isso há uma preocupação muito grande com a relação que se estabelece com as comunidades. "Esse não é um trabalho simplesmente de coleta de atividades, não é 1001 brincadeiras da Amazônia, isso para mim seria matar o projeto", explica Renata. O trabalho de valorização da cultura amazonense visa atingir também o público urbano, divulgando os frutos do projeto em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. "Eu acho que o povo amazonense é esquecido. A floresta não, mas o humano é esquecido", afirma a educadora. Para atingir esse objetivo, serão editados um documentário e um livro sobre a realização do projeto. Além disso, haverá exposições de fotos e brinquedos coletados e workshops para educadores a fim de transmitir os conhecimentos adquiridos. "Claro que esse trabalho vai ser expandido da melhor e maior forma possível", diz Renata. O desenvolvimento do projeto, que dura até dezembro, pode ser acompanhado pelo site www.escolaoficinaludica.com.br O PROJETO BIRA 2. Apresentação e explanação do projeto aos membros da comunidade, com palestra e exibição do vídeo que está sendo produzido (utilizando a câmera digital) 3. Troca de repertórios lúdicos; ensinar e aprender jogos, brincadeiras, confecções de brinquedos e cantigas 4. Registro das atividades lúdicas locais através de fotos e vídeo. Descrição exata das brincadeiras e jogos a ser publicada no livro. Coleta de brinquedos confeccionados no local. 5. Registro da vida cotidiana das crianças através de foto e vídeo. ERA UMA VEZ UMA MENINA QUE NÃO QUERIA CRESCER Era uma vez uma menina muito feliz chamada Renata. Ela adorava brincar - passava o dia inteiro brincando com os amigos e as irmãs mais velhas. Gostava tanto de ser criança, que não queria crescer de jeito nenhum. Às vezes, procurava o pai, chorando: "Eu não quero deixar de ser criança!" O pai tentava lhe explicar que todas as fases da vida eram muito boas e que ela deveria esperar para ver. A menina, no entanto, não queria ficar sem brincar de jeito nenhum. Então ela teve uma ótima idéia: iria trabalhar com crianças, e assim continuaria perto desse universo que tanto amava.E assim ela fez. Aos 15 anos, começou a trabalhar como coordenadora de bandeirantes. Depois foi professora de natação, baby-sitter, voluntária em creches, monitora de acampamentos... E não parou por aí. Quando estava na faculdade, realizou um projeto de levar brincadeiras tradicionais para escolas particulares, pois acreditava que as crianças precisavam brincar mais e se preocupar menos. Renata se interessava muito por jogos, então pesquisava bastante sobre a sua origem e diversidade ao redor do mundo. Mas como não havia muitos livros sobre o assunto, ela começou a pesquisar em comunidades por todo o Brasil. Assim, ela visitou uma comunidade carvoeira no Mato Grosso, os índios Xavantes e Guaranis e diversas cidades brasileiras. Quando fez 30 anos, a menina, que já era uma mulher, decidiu fazer algo que sempre sonhara: percorrer a região Amazônica pesquisando brincadeiras, num projeto de gente grande. Assim nasceu o BIRA. Muito contente por poder trabalhar com algo que gostava e em que acreditava, Renata finalmente foi dizer a seu pai que ele tinha razão. Adultos também podem ser felizes. CANTIGAS DE RODA Massariquinho* da beira da praia
Como é que a mulher veste a saia Fui à Espanha *Arigó: Homem simples, da roça DIÁRIO DE VIAGEM 10/07 - 1o diaCheguei hoje à Vila Macedônia, no Bailique. São 60 casas de madeira coladas umas às outras, algumas delas coloridas, interligadas por uma passarela de madeira a cinco palmos do chão. Ficam na beira do rio, e atrás delas pode-se ver uma floresta maravilhosa, fechada e quase intransponível. Estamos hospedados em uma casa de madeira com dois quartos e uma sala-cozinha sem paredes. Não tem banheiro, mas uma casinha de madeira separada da casa, com um espaço entre as tábuas do chão, onde se faz as necessidades. Também não tem chuveiro, tomamos banho de cuia. Os donos da casa são Teco, pescador, e Marta, dona de casa, ambos muito legais. De manhã, a Renata reuniu 7 crianças no quarto e pediu que cantassem cantigas para serem gravadas em MD. Ela tomava notas de todas as letras, gestos, palmas. Depois, foram filmar algumas meninas pulando elástico no quintal descampado do vizinho. Joseph filmou também algumas crianças brincando de roda na beira do rio, e no final eles jogaram bandeirinha com a molecada. Almoçamos 3 tipos diferentes de camarão: frito, cozido e ensopado, pescados pelo Teco e preparados pela Marta. Estavam deliciosos. No começo da noite, Renata preparou pipoca com suco para as crianças da vila, e as reuniu na casa para mostrar algumas cenas filmadas hoje, na câmera digital. Elas adoraram. Alguns adultos também vieram, e ficaram emocionados. 10/07 - 2o dia Logo ao acordar, a Renata levou as crianças até a mata para coletar tabocas (bambu) para fabricar espingardinhas. Durante a manhã, todos prepararam as suas armas, e depois do almoço participamos de uma grande guerra aqui na casa do Teco (até ele tomou parte!). Joseph disse que preferia não filmar hoje, já que nos dias anteriores eles tinham pedido às crianças que mostrassem muitas brincadeiras, tirando muito delas e dando pouco em troca. Então, decidiram que hoje seria dia de brincar. À noite, as crianças mostraram como se joga o bole-bole, uma espécie de Cinco Marias local, com regras diferentes e jogado com 12 pedras. 16/07 - 6o dia Viemos hoje para uma outra comunidade, a Vila Livramento, numa viagem de barco que durou 3 horas. A vila é bem menor do que a Macedônia: são 97 habitantes no total, divididos em 22 casas mais bem cuidadas e espaçadas umas das outras. Os terrenos são maiores, e sobre a grama bem-aparada passeiam porcos, vacas e galinhas d'angola. A principal atividade do pessoal daqui é a criação e a caça, então é mais comum se comer carne de boi, porco, galinha ou capivara do que peixe. Outra coisa diferente é o sentido de comunidade, que é muito mais forte. Hoje à noite foi marcada uma reunião com a comunidade na escola primária onde estamos hospedados (já que as crianças estão de férias). Vieram por volta de 40 pessoas, entre crianças, jovens e adultos, e cada um se apresentou para nós após a Renata apresentar o projeto e mostrar o vídeo. No final da reunião, todos participaram de uma brincadeira proposta por Renata. Em roda, cantamos a seguinte cantiga: Bate o monjolo no pilão Pega a mandioca pra fazer farinha Onde está o meu tostão Já passou pela minha mão Enquanto cantávamos, passamos alguns pedaços de giz de mão em mão, disfarçadamente. No fim, um membro da comunidade (que não participou da roda) teve que adivinhar com quem estavam os pedaços de giz. Para encerrar a reunião, todos deram as mãos e cantaram uma canção indígena, puxada pela Renata. Foi um ótimo começo; a comunidade mostrou estar realmente de braços abertos para receber e colaborar com o projeto. 18/07 - 8o dia Hoje levamos as crianças da vila para um passeio a uma fazenda aqui perto. A Renata contou histórias para elas durante o trajeto de barco, que levou 30 minutos. Chegando lá, vimos o fazendeiro fabricar queijo - um queijo delicioso. Joseph filmou o processo, explicando que aqui na Vila Livramento eles iriam se concentrar em filmar imagens do cotidiano. Na volta, assistimos à cerimônia de levantamento do mastro de Nossa Senhora do Livramento, em comemoração aos 40 anos da comunidade. É o marco inicial de uma festa que só vai terminar no dia 25, com um grande banquete. Jonathan filmou a cerimônia e Renata tirou algumas fotos. A missa foi puxada por um missionário, já que a igreja da vila está sem padre há 8 anos. Depois de ler um trecho da Bíblia, ele perguntou aos presentes o que tinham entendido, que ensinamentos tinham tirado da leitura. Como a Renata disse, foi uma missa "democrática", bonita mesmo de se ver. No final, todos rezaram pelo bem da festa, pela união da comunidade e por nós, "os estrangeiros", em nossas "andanças por aí". 20/07 - 10o dia Hoje é o nosso último dia aqui na Vila Livramento, A Renata preparou uma programação especial como colaboração na festa de aniversário da comunidade, com confecção de brinquedos, gincana e contação de histórias. Ela propôs ainda um desafio às senhoras: que fizessem bonecas com galhos de açaizeiro, um costume local. As bonecas ficaram lindas, e cada uma recebeu pela participação um kit de costura, com agulha e linhas. À noite, foi a hora da despedida, e a Renata fez um discurso parabenizando a vila pelo exemplo de união e hospitalidade. Os moradores disseram que gostaram de ter ajudado, e esperavam que a equipe do BIRA pudesse divulgar as coisas boas que registraram aqui. Depois, houve um grande baile no centro comunitário, e todos se despediram dançando muito Brega - o ritmo mais popular da região. O ARQUIPÉLAGO DO BAILIQUE Localizado a 185 km de Macapá por via fluvial (veja mapa) o Bailique é um arquipélago formado por 8 ilhas estuarinas, próximo ao encontro das águas do Rio Amazonas com as do Oceano Atlântico. A região, que abriga mais de 5000 habitantes em 38 comunidades, tem como principal atividade econômica a pesca, o extrativismo vegetal de açaí e palmito, a apicultura, a carpintaria naval, a agropecuária e o comércio.Além da enorme biodiversidade da região, que conta com animais como preguiças, capivaras, botos, peixes-boi e guarás, o Bailique apresenta uma riqueza humana muito peculiar, representada arquitetonicamente por singelas casas de madeira sobre passarelas de palafitas. Em cada casa, famílias de em média 6 pessoas organizam-se de acordo com um ritmo ligado à dinâmica da natureza, que ocupa um lugar muito importante na vida cotidiana. Acorda-se com o sol entrando pelas frestas entre as tábuas de madeira e galos cantando. As crianças então se aprontam para ir às pequenas escolas primárias presentes em quase todas as comunidades, ou esperam na beira do rio o barco que as levará até a Escola Bosque, único colégio da região, na Vila Progresso. Os adultos tratam de sair para suas atividades, sejam de pesca, criação ou extrativismo. Na hora do almoço, come-se uma variedade de peixes e camarão, se a pesca foi boa, ou de carne de alguma caça, como capivara ou veado - sempre com muita farinha. Depois da escola, de volta à sua própria comunidade, as crianças se reúnem nos descampados ou nas praias que se formam quando a maré vaza para brincar até o pôr do sol, refrescando-se sempre que podem com um banho de rio. À noite, entre 18h30 e 22h, as casas recebem a eletricidade dos geradores; é hora então de lavar roupas no tanquinho, ver TV, ouvir música no rádio ou tomar uma cerveja gelada. A maioria das casas não tem interruptores. Assim, não se pode escolher a hora de dormir. Quando finalmente a luz se apaga em toda a vila, as redes amarradas pela casa servem de pouso para os bailiquenses, até o dia seguinte. Natalia Viana Rodrigues - Jornalista |