"EU SOU POBRE, POBRE, POBRE..."

Raquel Z. Altman

Há alguns dias um informativo do Projeto Anchieta, que desenvolve ações de melhoria de condições de vida em uma comunidade, referia-se à doação, na época do Natal, de brinquedos novos para a criançada.

Foi até com emoção que lemos a notícia, pois há anos estamos caminhando pela via de convencer quem se propõe a fazer doações que o faça sempre com objetos novos ou extremamente bem recuperados. Se doamos nossas roupas encostadas, que estejam limpas e lavadas; aparelhos domésticos que funcionem; livros sem traças e com todas as folhas em estado de perfeita leitura e muitos outros exemplos poderiam ser aqui lembrados.

Mas nossa maior preocupação está voltada para as crianças. Ao acompanhar a doação de brinquedos, atividade em geral realizada por adultos, temos, muitas vêzes, a impressão de que não passa de uma atitude de caráter filantrópico, na acepção mais simples do termo. "Dei um brinquedo para uma criança pobre, cumpri uma boa ação." Não importa se o carrinho tem as 4 rodas, se a boneca tem cabelos, se o jogo tem as peças fundamentais. Fica a impressão de que mal se olhou para o brinquedo para ver se ele não tem partes cortantes, pontas afiadas ou está encardido. E, para doá-lo, não só o adulto, mas a criança, que com ele brincou, também participa, abrindo mão de um brinquedo que já estava encostado, mas sendo levada a pensar que está praticando uma boa ação. Com isso aprende a alimentar os velhos preconceitos que a sociedade procura extinguir em verso e prosa.

É claro que muitas vezes precisamos nos desfazer de objetos de todo tipo. Mas, como sugestão, por que não doá-los a instituições sociais preparadas para sua recuperação e venda por preços irrisórios?

E ainda mais: e o que dizer das expressões doar e carente? Por que em vez de doar não damos de presente um brinquedo? Por que em vez de darmos um brinquedo para uma criança carente não damos um brinquedo para uma criança pobre, para uma criança que não tem brinquedo porque o pai está sem trabalho e portanto tem que se preocupar antes com outras necessidades? Simplificando, estamos dando um brinquedo para uma criança e ponto. Carente é uma palavra com amplo espectro: carente de vitamina, carente de ferro e cálcio, carente de afeto. Palavra que serve para todos, portanto. O que as famílias são, e suas crianças também, é pobres mesmo. Se não, para antônimo de carente, teríamos que usar a expressão "excedente" para os mais afortunados?