BRINCAR VIVER APRENDER: educação e ludicidade no hospital
Tânia Ramos Fortuna Resumo A partir de reflexões sobre o brincar e suas relações com o desenvolvimento e a aprendizagem, o presente texto apresenta algumas respostas à questão 'Por que brincar no hospital?'. Examina o espaço do hospital e seus profissionais, situando aí a criança doente e sua família, desde a perspectiva da ludicidade. Propõe o brincar no hospital como um modo de afirmar a vida, definindo o papel do educador lúdico e as implicações para o serviço de recreação hospitalar. Palavras-chave: brincar - aprendizagem - hospital PLAYING, LIVING AND LEARNING: education and games in the hospital
AbstractDeriving from reflections on the playing role and its relations with development and learning, the current text introduces a few answers to the question "Why playing in the hospital?". It examines the hospital space and its professionals and locates the sick child and his/her family therein from the game perspective. It proposes playing activities in the hospital as a way of affirming life, by defining the role of the game education agent and the implications for the hospital recreation service. Keywords: playing - learning - hospital Introdução A importância de brincar é unanimemente admitida, inclusive no hospital. As opiniões dividem-se, no entanto, quanto aos motivos pelos quais é importante - e, como crêem alguns, mais do que isto, necessário - brincar no hospital. Por que brincar no hospital? Para distrair a criança de seu sofrimento? Para torná-la mais disponível ao tratamento hospitalar? Ou porque brincar no hospital é um modo de preservar seu direito de criança à brincadeira? Será importante brincar no hospital porque, brincando, a criança é estimulada a apropriar-se dos recursos necessários ao enfrentamento da doença e da dor? Ou, ainda, porque a brincadeira no hospital é um modo de encarar as necessidades psicossociais da criança? Também existem distintos enfoques quanto a como brincar no hospital, particularmente no que se refere ao papel do adulto na brincadeira infantil: o educador lúdico brinca junto? Deixa brincar? Apenas oferece brinquedos? Estimula a brincadeira com os utensílios hospitalares? E a aprendizagem, onde e como fica no hospital? As diferentes respostas denunciam pontos de vista diversos acerca do papel do brincar e da sua relação com o tratamento, a saúde e a vida. Para encontrar a resposta apropriada, isto é, aquela que efetivamente sustenta a defesa da brincadeira no ambiente hospitalar, sem entrar em contradição com o próprio ato de brincar, com as necessidades e características da criança, com os objetivos do tratamento, com os sentimentos dos familiares e com as especificidades do hospital, é preciso considerar o significado do ato de brincar e identificar suas relações com a aprendizagem, além de compreender o que uma criança experimenta quando está no hospital. A partir daí é possível definir a adequada abordagem lúdica da criança hospitalizada, estabelecendo princípios gerais para sua realização. Sobre o brincar Brincar é uma atividade fascinante: até quando ocorre entre os animais desperta curiosidade e interesse nos humanos. Quando observada nos seres humanos, comove, emociona, intriga e diverte, quer pelo mistério que sugere, dada a aparência cifrada que possui, quer pelas lembranças infantis que suscita no observador e pela surpresa que oferece, fazendo rir. No entanto, este mesmo fascínio é, em parte, responsável pelo desprezo que acompanha o brincar, pois brincar é, freqüentemente, romantizado, idealizado e essencializado, impedindo uma compreensão aguda e crítica de suas características e motivações. Assim, a brincadeira acaba sendo motivo para ironia, ridicularização e franco desprezo não só dela mesma, mas também de quem brinca. Cobra-se seriedade da brincadeira e de quem se ocupa do brincar. Acusa-se quem brinca de 'não ter mais o que fazer', identificando-a com ornamento e desocupação. Por outro lado, o que pode guindar a brincadeira a um justo lugar na vida não é o olhar cientificizado, livre das paixões, pois o ato de brincar não se submete, é uma atividade indômita, incerta, imprevisível - a razão mesma de seu fascínio. O tratamento meramente técnico dado ao assunto encarregar-se-ia de extinguir a própria motivação para estudá-lo. Descrita deste modo, a brincadeira parece não ter como escapar deste dupla condição: fascinante e desprezível. Não é verdade: o que pode garantir o lugar que a brincadeira merece é tratá-la exatamente como ela é, isto é, com seriedade (porque em nenhum momento estamos tão compenetrados e tão sérios quanto quando brincamos) e paixão (porque nada nos arrebata tanto quanto a brincadeira, o jogo, onde estamos inteiros). Insistir na presença da paixão no estudo do brincar parece estar na contramão da ciência, mas já foi demasiadamente provado que na área das ciências humanas não há como se liberar da subjetividade e das emoções para produzir conhecimento. Mais do que isto, este gesto não contribui para o próprio conhecimento que se pretende produzir, posto que ele é feito por homens, para os homens e acerca dos homens. Assim, a participação da paixão é essencial no estudo da atividade lúdica: é ela que ajuda a explicar o envolvimento com o tema, é ela que aponta os caminhos dos significados atribuídos ao ato de brincar, por cada um de nós, ao longo do tempo, nas diferentes áreas de conhecimento, em cada época, é ela, enfim, que autoriza a experiência lúdica a fazer-se conhecimento. A paixão, através do arrebatamento e do desejo, está presente no próprio ato de brincar, pois toda a fantasia, descobriu Freud, é realização de desejo, funcionando como uma espécie de correção da realidade insatisfatória (Freud, 1907, p. 151). Todo jogo é mediador de desejo, traz consigo uma satisfação e permite expressar seu desejo aos outros em jogos compartilhados, sendo, sempre, uma esperança de prazer (Dolto, 1999). Não há uma fronteira impenetrável entre a fantasia e a realidade; muito pelo contrário, existem diferentes formas de vinculação entre a atividade imaginadora e a realidade, já afirmava Vygostsky (ed. orig. 1933). O poeta já dizia: "só não existe aquilo que não pode ser imaginado" (Murilo Mendes). Morin (2001), em seu estudo sobre os complexos imaginários, onde atribui especial lugar ao estado estético-lúdico, defende que A dialética das relações prática-imaginário é, por conseguinte, o tecido fundamental de nosso universo, de nossa realidade humana...
Não é apenas o trabalho humano, mas também os processos imaginários que dão densidade e corpo ao nosso mundo (id., p. 102) Nas palavras de Freud, A antítese do brincar não é o que é sério, mas o que é real. Apesar de toda a emoção com que a criança catexiza seu mundo de brinquedo, ela o distingue perfeitamente da realidade e gosta de ligar seus objetos e situações imaginados às coisas visíveis e tangíveis do mundo real.
Essa conexão é tudo o que diferencia o 'brincar' do 'fantasiar'. (op. cit., p. 149) Mas, afinal, o que é o brincar? Ao contrário do que muitos pensam, não é alívio de tensões ou descarga pulsional, tampouco exclusiva preparação para o mundo adulto. É, sim, uma atividade real para aquele que brinca, por meio da qual liberta-se de um trauma através da experiência de domínio de uma situação, expressando, assim, não suas pulsões, mas sua capacidade de expressar pulsões. É por isso que brincar assume o estatuto de linguagem, pois é forma de expressão, não só no sentido de 'falar', mas como código de significância dos gestos e comportamentos. Mediante o jogo com objetos a função simbólica, continuamente alerta no ser humano, constrói redes de analogia e correspondência com a realidade concreta das experiências manipuladoras corporais e mentais interindividuais. Ser, ter, fazer, pegar, dar, amar, odiar, viver, morrer - todos estes verbos começam a adquirir sentido por meio dos jogos (Dolto, op. cit., p.115). Nietzsche já dizia: brincar é uma invenção contra o tédio, o que autentica a idéia de que a motivação da brincadeira não é o alívio, a ausência de tensão, já que ela se insurge, exatamente, contra isto. Seu caráter de elaboração está presente desde quando surge a capacidade de brincar: Winnicott (1975) crê que a atividade lúdica, originalmente, desponta como meio de elaborar o luto pela perda dos cuidados maternos, quando o bebê começa a perceber que está separado da figura materna e se cria um espaço potencial entre ambos. Brincar é uma atividade dinâmica que produz e resulta de transformações. Os brinquedos acumulam significados atribuídos não só pelo indivíduo que com ele brinca, naquele instante, mas também por várias gerações e povos, ao longo da história da humanidade. Ao mesmo tempo, as brincadeiras e os brinquedos, como mediadores da relação do homem com o mundo, modificam a percepção e a compreensão que dele tem, constituindo-se em genuínas ferramentas para aprender a viver. Viver, inclusive, em sociedade, já que brincar é tam bém uma atividade social que tem a especial característica de permitir a reconstrução das relações sociais sem fim utilitário direto enquanto ensina a viver numa ordem social e num mundo culturalmente simbólico. No jogo há lugar para experimentar o prazer, o domínio de si, a criatividade, a afirmação da personalidade e a valorização do eu. É uma atividade cognitiva, uma vez que cria um espaço para pensar onde o indivíduo, brincando, enfrenta desafios, formula hipóteses e soluciona problemas, além de ter que se haver com regras que precisa obedecer e mesmo estabelecer, o que propicia uma importante experiência moral. A abrangência desta experiência moral vai desde os temas do bem e do mal, cuja presença é freqüente na brincadeira, até a construção da autonomia. Um de seus traços distintivos em relação a outras atividades é a tomada de decisão que supõe, já que para haver brincadeira é preciso decidir brincar (Brougére, 1995). Nota-se, assim, que brincar desenvolve a iniciativa, a imaginação, o intelecto, a curiosidade e o interesse, o corpo e a estrutura psíquica, o senso de responsabilidade individual e coletiva, a cooperação, colocar-se na perspectiva do outro, a capacidade de lidar com limites, a memória, a atenção e a concentração por longo período de tempo. Para Vygotsky (op. cit.), a ação, numa situação imaginária, ensina a criança a dirigir seu comportamento não pela percepção imediata dos objetos ou pela situação que a afeta de imediato, mas também pelo significado dessa situação, o que quer dizer que brincar exige e ensina a interpretar. A despeito da ausência de fronteira entre o brincar e a realidade, é relativamente fácil perceber que alguém está brincando: pistas faciais e corporais, riso, descontração, variações no tempo verbal (combinação de presente e pretérito imperfeito, como no verso 'e agora eu era o herói'), na articulação e entonação da fala, sinalizam a ocorrência da brincadeira, que também envolve o convite à brincadeira, combinações sobre seu desenvolvimento e avisos de seu encerramento, configurando a metacomunicação que a caracteriza. A propósito do emprego do tempo verbal pretérito imperfeito do indicativo nas narrativas lúdicas, Gallino (1998) assinala que a expressão 'era uma vez' serve para fazer referência a acontecimentos ocorridos em uma época e num local mal-determinados ou indetermináveis, isto é, um lugar à parte, uma dimensão espaço-temporal alternativa. Este espaço-tempo separado da realidade ordinária, ainda que a ela relacionado, é outra característica da atividade lúdica. Embora não seja possível afirmar categoricamente para que serve a brincadeira, os custos desta atividade são tão elevados para as espécies que brincam, envolvendo gasto de tempo, energia e exposição a riscos, que o retorno, em termos de benefícios, deve ser considerável. Pesquisadores dividem-se quanto à função do comportamento lúdico: uns propõem benefícios unicamente evolutivos, de longo prazo, enquanto outros acreditam que a brincadeira se mantém pelos benefícios imediatos que proporciona ao indivíduo (Yamamoto e Carvalho, 2002). A aprendizagem que a brincadeira permite concorre para a adaptação do indivíduo a novas situações e a novos ambientes, podendo assim explorar novas oportunidades, interagir com pessoas e objetos, liberar a criatividade, explorar limites e ampliar seu repertório de comportamentos de forma prazerosa e significativa. A brincadeira está, assim, indelevelmente ligada à aprendizagem e aos comportamentos sociais. O que não quer dizer que possa ser dirigida, pois quando proposta ou mediada pelo adulto a aprendizagem pelo brincar extravasa os limites por ele fixados, propiciando novas aprendizagens além daquelas pretendidas. Wallon (1966) já havia percebido o potencial transgressivo do brincar, ao defini-lo como uma transgressão do real. Este traço transgressivo é um dos fatores responsáveis pela resistência dos adultos diante da ação de brincar, devido à dificuldade que têm em aceitar a importância de uma atividade na qual seu papel não é central, tampouco diretamente determinante de seus efeitos. Com uma visão adultocêntrica da aprendizagem e do desenvolvimento, recusam-se a reconhecer a relevância da brincadeira espontânea, e quando intervém na atividade lúdica, comumente a destroem, asfixiando-a através da exacerbação da diretividade e das preocupações pedagógicas que didatizam o brincar (Fortuna, 2000). É tão abundante a aprendizagem na brincadeira , é tão evidente o quanto se aprende brincando, que soa redundante defender a brincadeira como forma de aprender. Para quem brinca, a pergunta 'brincar pra quê?' é vã, pois brinca-se por brincar, porque brincar é uma forma de viver. Como recordam Yamamoto e Carvalho (ibid.), o indivíduo que brinca não o faz porque isto o torna mais competente, seja no ambiente imediato, seja no futuro. A motivação para brincar é intrínseca à própria atividade. Brincar é considerado terapêutico, haja vista a semelhança de função que têm alguns brinquedos com o psicoterapeuta, como confidentes de segredos e ouvintes pacientes, ensejando a prática espontânea de uma espécie de psicoterapia. A díade terapêutica formada pela criança e seu ursinho de pelúcia, por exemplo, permite o desdobramento da personalidade da criança mediante o qual, agindo sobre o brinquedo, interpreta papéis elaborando emoções e situações complexas, difíceis, de outro modo, de aceitar e compreender (Gallino, op. cit., p.83). Um exemplo disso é a elaboração do medo. Informa Gallino, a partir da pesquisa que realizou sobre crianças e seus objetos transicionais, que mais de 40% das crianças afirmam que seus bonecos e bichos de pelúcia têm medo. Para a criança, o medo não é sentido apenas como um modo de estar interior, mas sim, em primeiro lugar, como uma condição externa, uma sensação que ataca de certo modo de fora e se insinua no interior, invadindo, assim, todo o ambiente e o espaço, e estando também dentro deste espaço. O ambiente pode tornar-se temeroso, porque faz medo, e porque ele próprio está impregnado de medo e envolvido nele. Mas as próprias crianças ensinam como enfrentar o medo, como uma menina, com 4 anos e 6 meses, que diz fazer "um truque mágico" para combater o medo que seu ursinho tem dos lobos: "faço-o rir e assim já não tem medo". Ou a outra criança que explica para o seu elefante de pelúcia que tem medo de bruxa e fantasma que, afinal, "eles não são de verdade", enquanto o coloca debaixo dos cobertores. Ao dar um nome e uma etiqueta aos próprios medos, de modo a exprimi-los de viva voz, a poder declará-los abertamente e a ter a certeza de que os outros poderão aceitá-los e compreendê-los, a criança realiza uma sofisticada operação mental em que fala consigo mesma e com os outros de uma sensação que, de outro modo, seria inexprimível. Ao mesmo tempo, circunscreve o âmbito e os limites daquilo que assusta, prepara o processo de redução e, finalmente, de extinção dos medos, capacitando-se, com o tempo, a superá-los (id., p.147). Brincar é, portanto, sinal de saúde: é mesmo porque uma criança é átona, não brinca, porque seu olhar não é solicitado por nada que a rodeia ou porque seus gestos são repetitivos, contínuos e sem modulação de prazer nem inventividade, que se pode saber que esta criança sofre de depressão por uma causa recente, ou de distúrbios de relacionamento precoce em vias de organização, mesmo quando seu estado de saúde física parece totalmente satisfatório (Dolto, op. cit., p.111). Por fim, mas não menos importante, brincar é um direito da criança, conforme o art. 7º da Declaração dos Direitos da Criança promulgada pela ONU em 1959, inclusive no hospital, como prevê o princípio 6 da Carta da Criança Hospitalizada - Carta de Leiden, estabelecida em 1988 sob inspiração da Carta Européia da Criança Hospitalizada aprovada pelo Parlamento Europeu em 1986. Como brincar com uma criança hospitalizada? Para responder a esta questão é necessário, primeiro, compreender o ambiente hospitalar do ponto de vista da criança. Sobre a criança no hospital Sob o argumento da necessidade de cumprimento do seu objetivo principal, qual seja a cura, o hospital é estruturado, não para ver o paciente como ser humano em sua natureza complexa, mas para tratá-lo de forma idêntica, fragmentária e especializada, uniformizando e numerando tudo e todos. O atendimento é despersonalizado e desumanizado em nome da tecnologia e competência científica. Tudo isto instaura um processo de destituição subjetiva dos pacientes cujo efeito é paradoxal: aquilo mesmo que cura acaba, também, por adoecer, já que esta dessubjetivação representa uma situação de risco para a saúde. O que significa o adoecimento corporal e o confinamento no hospital para a criança? A separação da família, dos amigos, dos brinquedos, da escola (professores, colegas, pátio, status de aluno), dos bichos de estimação. Representa também uma interrupção em sua rotina de alimentação, sono, brincadeira e escola e a exigência de adaptação a outros ritmos. Com isso, exige atenção a estímulos diferentes daqueles recebidos em casa, constituindo-se ora em hipo-estimulação, ora em hiper-estimulação, como assinala Santa Roza (1997). O aproveitamento escolar pode ser prejudicado, particularmente naquelas crianças cujo adoecimento implica re-internações sucessivas, muitas vezes ocasionando uma franca desmotivação para o retorno à escola que culmina com reprovação ou evasão escolar. A criança teme que seus colegas e professores não a reconheçam como parte da turma, o que bem expressa quão afetada é a identidade do indivíduo hospitalizado. A hospitalização impõe a necessidade de confiar em desconhecidos, precisamente quando a situação desconhecida angustia. Determina limitações físicas - não pode se mexer, ou correr - requerendo passividade nos procedimentos médicos e de enfermagem, quando é preciso "ficar quietinha". Defronta com a ansiedade dos familiares que sentem impotência e pena da criança doente, acarretando culpa na criança por provocar isto nos adultos. Suscita sensação de agressão corporal, medo e fantasias oriundas da manipulação física e intervenções mais violentas. Inflige, em maior ou menor grau, dor, por mais avançados que sejam os recursos anestésicos disponíveis na atualidade. Produz sentimento de desvalorização em relação às outras crianças, acentuando a sensação de falta - de carinho, atenção, liberdade, conhecimento, saúde, vida. Enfim, confronta com a morte, tema sobre o qual adultos evitam falar ou mesmo pensar, motivando fantasias assustadoras nas crianças. Tais fenômenos colaterais da hospitalização estimulam modificações de ordem subjetiva, configurando um original mosaico de sentimentos e sintomas gerados na esfera mental, tais como anorexia, vômitos, insônia, depressões, regressões, suscetibilidade às infecções, apatia, inibição ou agitação psicomotoras, fobias, distúrbios de comportamento. Erroneamente atribuídos a problemas orgânicos, são abordados como tal, somando novos medicamentos e intervenções ao tratamento, o que reforça seu ciclo produtivo e enseja mais dor e tristeza. Sobre o brincar no hospital Neste contexto, é absolutamente necessário manter a individualidade infantil e permitir manifestações de sua subjetividade. Brincar no hospital, quer através da recreação hospitalar, quer através da classe hospitalar, é uma alternativa neste sentido, desempenhando o papel de intervenção coadjuvante aos procedimentos clínicos e laboratoriais. As conseqüências psicológicas de uma hospitalização são muitas, mas a criança no hospital continua sendo criança e para garantir seu equilíbrio emocional e intelectual o jogo é essencial. Pelo brincar sua condição de criança - e não apenas de paciente - é reafirmada. O que acontece quando a criança brinca no hospital? Pelo brincar ela se expressa, mostra o que sente e quem é, aparecendo como sujeito, com vontades, e não mero objeto de cuidados. As tensões provocadas pela internação diminuem, favorecendo a adesão ao tratamento e relativizando sua vitimização, isto é, sua condição de 'coitadinha'. Mantém-se a continuidade no processo de estimulação de seu desenvolvimento e aprendizagem, através de atividades e experiências que os apóiam. Neste aspecto reside a importância da classe hospitalar, entendida como atendimento pedagógico e escolar à criança e ao adolescente hospitalizados, desde que este espaço não repita os defeitos da escola tradicional, com seu ensino sem significado, baseado em processos mnemônicos e extremamente diretivo. A classe hospitalar constitui-se numa oportunidade de ensaiar novas abordagens do ensino e pode representar um espaço de renovação pedagógica, especialmente quando ludicamente inspirada, quem sabe até conferindo novos sentidos ao conceito de escola e aprendizagem e contribuindo, assim, para reconciliar a criança com a vida escolar. Crianças com condições intelectuais, físicas e emocionais preservadas para a situação de ensino-aprendizagem beneficiam-se com a classe hospitalar, que lhes restitui a identidade e concorre para a promoção da inclusão social, já que estar na escola e ter sucesso escolar são alguns de seus mais caros indicadores. Se os brinquedos e brincadeiras são adaptados às limitações e especificidades da criança e do ambiente hospitalar, se ela pode escolhê-los e se pode ter sucesso brincando com eles, brincar no hospital propicia a conquista e/ou manutenção de sua autoconfiança. Seu restabelecimento físico, cognitivo e psíquico é, por conseguinte, mais imediato e duradouro, acelerando seu retorno à vida anterior à hospitalização. Até mesmo a preparação para este retorno à casa, escola e comunidade é beneficiada pela brincadeira: se a permanência for longa, os vínculos podem ter se rompido e ela precisa ser auxiliada a retomá-los, o que é possível fazer brincando. Assim como a presença de um objeto, um animal, uma boneca ajudam-na a sentir-se segura na hora de dormir, pois permitem a recriação da situação mãe-filho na qual protegem-se mutuamente, os brinquedos no hospital cumprem um papel de proteção como objetos de transferência que fazem com que não se sinta sozinha (Dolto, 1999, p.99). Contudo, brincar no hospital não deve servir para distanciá-la da realidade, distraindo-a, tal como uma manobra diversionista, mas deve auxiliá-la a vivê-la: desenvolvendo seu raciocínio, sua capacidade de expressão, melhorando seu ânimo, a criança reúne forças e instrumentos intelectuais para compreender a realidade em que vive. Exemplos dos resultados da abordagem lúdica no hospital são eloqüentes testemunhos da melhora da criança hospitalizada, como se verá a seguir. Lindquist (1992), na descrição do caso Erik, menino cego e com deficiência motora, conta como as experiências no pátio do hospital, na cozinha e na floricultura serviram para ampliar seu mundo, enquanto Per Ake, menino com grave paralisia cerebral, pôde mostrar à sua volta que não era um idiota. Graças às suas experiências e descobertas Yvonne Lindquist tornou-se doutora honoris causa da Faculdade de Medicina de UMEO e diretora de seção da Secretaria Nacional de Saúde e Bem-Estar Social em Estocolmo, Suécia, difundindo a terapia pelo brinquedo (Lindquist, 1993). Lenzi (1992), na Divisão de Pediatria do Hospital Universitário da Universidade de Santa Catarina protagonizou diversas experiências em torno da brincadeira no hospital. Percebeu, por exemplo, que a transformação do tubo de soro em brinquedo pode permitir à criança lidar com a dualidade da situação agressão/cura, já que transforma o objeto agressor em brinquedo. Também observou que o fato dos pais participarem desta construção produz alívio no sentimento de culpa que experimentam por submeterem seu filho - ainda que involuntariamente - a situações de sofrimento, pois percebem-se, como responsáveis que são pela criança, também responsáveis pela situação que ela enfrenta. Lenzi descobriu, após visita domiciliar às crianças hospitalizadas, que o roubo de brinquedos e a resistência à alta hospitalar devia-se às condições de vida e atenção inferiores às obtidas no período da hospitalização, e que a saída do hospital era vivida como perda. Estas constatações apoiaram as mudanças adotadas:os brinquedos industrializados são utilizados somente na sala de espera, enquanto na internação na Pediatria os brinquedos oferecidos são confeccionados com sucata hospitalar e domiciliar, envolvendo os pais (ib.) Pesquisa feita pela Universidade da Catania, na Itália (Pesquisas revelam que ludicidade contribui no tratamento de câncer, 2001), com 32 crianças com leucemia, com idades entre 2 e 14 anos constatou que, uma vez submetidas à terapia da arte, apresentaram comportamento mais colaborativo em seu tratamento. Antes, durante e depois da punção lombar e aspiração da medula óssea em 17 crianças adotou-se:
O Centro Infantil Boldrini, em Campinas, São Paulo, especializado no tratamento de doenças onco-hematológicas empreendeu uma pesquisa com 40 crianças com idades entre 4 e 17 anos, em dezembro de 2000 e junho de 2001, aproveitando a interrupção por seis meses do funcionamento da brinquedoteca, para reforma. Os resultados revelaram que a utilização da arte como recurso terapêutico torna o paciente mais colaborativo no tratamento, alivia a angústia diante de procedimentos invasivos e diminui a hostilidade ao ambiente hospitalar (id. Ib.) No GRAACC (Grupo de Apoio ao Adolescente e a Criança com câncer que gerencia o Instituto de Oncologia Pediátrica da UNIFESP) a Brinquedoteca Seninha abriga atividades lúdicas diversificadas desenvolvidas por colaboradores voluntários, sob supervisão da própria equipe, em instalações especialmente concebidas para este fim, oferecendo brinquedos, jogos eletrônicos, livros, música e tevê não apenas para as crianças em tratamento, mas também para seus pais e acompanhantes. No Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, nossa experiência no período de 1995-1997, quando supervisionávamos alunas de Pedagogia em atividades ligadas ao apoio pedagógico tanto do setor de Oncologia Infantil quanto de Pediatria, baseou-se na convicção de que o educador deve ir aonde o aluno está, e se há um aluno hospitalizado, lá deve haver um educador. Privilegiávamos a abordagem lúdica do ensino porque percebíamos que, para muitas crianças, aquela talvez fosse uma rara oportunidade de experimentar uma aprendizagem significativa. Também participamos de várias comemorações promovidas pelo setor de recreação, cujo objetivo era oferecer um marco temporal às crianças. Descobrimos, com esta experiência, que a manutenção dos laços de pertencimento - no tempo, no espaço, em um grupo social - também contribui para a preconizada inclusão social, citada linhas atrás. No entanto, o brincar subverte a ordem hospitalar ao propor novos padrões de relação entre pacientes, médicos, equipe de enfermagem e familiares e incentivar a atividade em contraponto à passividade, gerando desconfiança e oposição. O desenvolvimento da abordagem lúdica no hospital esbarra em várias dificuldades, entre elas a relação entre o status rebaixado do brincar em nossa cultura e o status daqueles que se ocupam disto no hospital. Como o ato de brincar tem fama de ornamento, de algo sem importância, que só se faz quando todas as tarefas ditas sérias já foram cumpridas, aqueles que trabalham brincando são, igualmente, vistos como tão desqualificados quanto a brincadeira que estimulam. As marcas de diferenciação que trabalhar com o brincar introduzem na relação com o conhecimento técnico, na postura e nas atitudes reforçam esta rotulação, conduzindo ao isolamento e, até mesmo, ao tratamento prejudicial na carreira profissional, com planos de cargos e salários inferiores aos dos demais profissionais do hospital. Além disso, fomentar o brincar no hospital produz, freqüentemente, ansiedade e culpa , pois é como se o sofrimento fosse desvalorizado pelo brincar. Tanto familiares quanto profissionais do hospital sentem-se até mesmo ofendidos com a brincadeira neste lugar tão sério, que lida com situações tão graves, e que parecem ser desconsideradas pela abordagem lúdica. A animação e a alegria experimentadas confundem e desorientam adultos, causando perplexidade e insegurança e fazendo-os desconfiar, inclusive, da propriedade dos procedimentos clínicos adotados, que passam, por extensão, a ser vistos como não sérios. Contudo, por mais acerba que seja a crítica à brincadeira no hospital, é impossível ignorar os benefícios que acarreta, não apenas à recuperação da criança, mas também por colocar em discussão o padrão de funcionamento hospitalar. Por que tudo deve ser branco, ou em tons pastéis, parecendo apagar a lembrança de como a vida é colorida? Porque o silêncio, tão necessário ao processo de recuperação, não pode ser pontuado por música, gargalhadas e contação de histórias, também contributivas para esta mesma recuperação? Brincar no hospital acaba gerando uma revolução - lúdica! - onde o educador tem um importante e específico papel a desempenhar. Sobre o educador lúdico no hospital Concebo o educador lúdico no hospital como aquele profissional que, exercendo a função de recreacionista, professor da classe hospitalar, contador de histórias, ou, ainda, de médico, enfermeiro, psicólogo, assistente social, arte-terapeuta, etc., estimula o desenvolvimento e a aprendizagem infantil de forma lúdica. Conecta a criança com o mundo exterior ao hospital e ajuda-a a compreender o mundo do hospital, brincando. Garante o tempo e o espaço para o brincar, acreditando, como Machado (1998), que o brincar tem hora, sim, e que apropriar-se deste tempo é um direito de cada criança no mundo, direito este ao qual corresponde o dever do adulto de inserir esta temporalidade. Se brincar é entendido como um direito infantil e princípio prioritário que deve ser respeitado, o modo de distribuir o tempo e de arranjar os espaços deve explicitar isto. Afinal, a rotina diária não é neutra, e aquilo que ela prioriza denuncia seus valores e princípios subjacentes. O educador lúdico cria situações-problema que desencadeiam a atividade espontânea do sujeito, com base na qual suas estruturas cognitivas e psíquicas se desenvolvem. Age como a mãe suficientemente boa descrita por Winnicott (op. cit.): efetua uma adaptação ativa às necessidades da criança, dando-lhe a ilusão de que existe uma realidade externa correspondente à sua própria capacidade de viver. Apesar de ativa, sua participação não deve ser intrusiva, uma vez que as atividades lúdicas devem ser propostas de forma que a criança possa tomar decisões e agir de maneira transformadora sobre conteúdos significativos e acessíveis para ela, segundo o seu ritmo de brincadeira. Muitos adultos, ansiosos em distraí-la de seu sofrimento e, talvez, também motivados pela chance de distraírem-se a si mesmos, não respeitam o tempo e a vontade de brincar da própria criança, estimulando-a excessivamente, até o momento em que a brincadeira desanda em choro ou briga. Também é preciso considerar que a criança pode conhecer um prazer muito vivo numa maneira de ser aparentemente passiva. Dolto (op. cit.) lembra que o prazer de ouvir, olhar, sentir, observar é, para elas, brincar, ou melhor, divertir-se com as percepções que encontram estando atentas e as quais dão sentido em conseqüência da função simbólica de que estão constantemente animadas. Estes momentos passivos, em contraposição aos outros momentos ardentes do jogo, devem ser respeitados. Há momentos em que, serenas, ficam imóveis, ocupadas em contemplar, ouvir, observar. São prazeres passivos, inteligentes, observadores, às vezes meditativos. É bom para uma criança sensível e inteligente brincar de ficar silenciosa consigo mesma e com os familiares, com o corpo e o coração sintonizados com o espaço e o tempo que passa. Dolto acredita que os adultos parecem temer o que pensam ser o vazio mental das crianças, talvez porque em seus momentos de passividade não seja o bem-estar que encontram (id. ibid. p. 116-7). No hospital, tentar evitar este vazio, preenchendo o tempo com muitas atividades, representa, muitas vezes, uma tentativa de afastar a angústia residual provocada pela dor, pela incompreensão e pelo medo. Porém, angústia não se combate com angústia. Ocasiões em que a criança fica a sós consigo mesma e com seus brinquedos podem ser tranqüilizadoras, pois podem ajudá-la a organizar seu mundo interno e compreender a realidade que a cerca. É preciso preservar a porção de intimidade que a brincadeira encerra. Enfim, com um brinquedo ninguém está, de fato, a sós... Ao educador lúdico compete oferecer brinquedos e brincadeiras variadas, com as quais a criança experimenta sua sensorialidade, motricidade e inteligência, como livros infantis, jogos de construção, lógicos, motores, de inventividade e de criatividade, bem como bonecos e acessórios fantásticos. Estes últimos, usualmente ausentes das escolas, como Brougére (1998) descobriu, em benefício dos jogos denominados educativos, são altamente estruturantes do ponto de vista psíquico, haja vista o mundo imaginário que desdobram ante a criança, um cenário perfeito para encenar o medo e combatê-lo. Além disso, também vinculam a criança à realidade externa, pois as referências culturais que contêm e a forte presença na mídia lembram-na que o mundo fora do hospital continua existindo e tem relação como o mundo dentro do hospital. O forte apego que as crianças criam com alguns destes brinquedos não deve surpreender: chamados também de 'brinquedos de afeto', os bonecos e bonecas parecem ser mais suscetíveis às projeções de conteúdos mentais inconscientes relacionados às figuras paternas. É por isso que se separar deles obedece a um particular processo de elaboração que deve ser respeitado pelos adultos, não cerceando o desejo de posse que as crianças têm destes brinquedos, nem que para isto campanhas de doação e/ou confecção devam ser empreendidas, em detrimento de oferecê-los em regime de empréstimo. Tais atividades e objetos devem ser instigantes, mas sem esquecer que são tanto mais atraentes quanto mais surpreendentes conseguem ser. Sua atração decorre menos da beleza plástica ou sofisticação do que do mistério que sugerem. Também compete brincar com a criança, até mesmo com aqueles brinquedos com os quais ela já brincou muito e que foram abandonados, pois ver outra pessoa brincar com eles revigora o interesse que uma vez provocaram. A curiosidade suscitada pela forma de brincar do outro, criança ou adulto, renova a brincadeira. Como admitem Bandet e Sarazanas, "os brinquedos nunca morrem completamente, dado que basta um desejo ou uma circunstância para ressuscitarem" (1973, p.33). Por outro lado, até mesmo aqueles brinquedos que impõem gestos regulares e reprodução de certos ritmos têm suas vantagens, uma vez que criam um padrão de estabilidade e de segurança no qual é possível encontrar ordem e equilíbrio. Instigar é criar rupturas no tempo e no espaço, de modo a ajudar a criança a admirar-se, a refletir, a construir-se ao mesmo tempo em que se enche de alegria e surpresa (Bandet e Sarazanas, ib., p.110). As interações criança-criança consistem em uma parte fundamental da brincadeira. Uma das atribuições do educador lúdico é fomentá-las, apresentando companheiros de brinquedo e aproximando crianças com interesses comuns. Elas podem ter algo mais em comum, além de estarem doentes. Ao compartilhar brinquedos e brincadeiras, experimentam a identidade lúdica. Quanto à interação criança-adulto, é preciso lembrar que as crianças brincam com mais facilidade quando a outra pessoa pode e está livre para ser brincalhona (Winnicott, 1975, p.67). No entanto, brincar com a criança é diferente de ser a criança. A criança sabe bem quem é quem, e espera do adulto o mesmo, embora divirta-se em testar a possibilidade de transgressão destes papéis. Uma certa artificialidade sobrevém, destruindo o clima lúdico, quando o adulto tenta divertir-se como se fosse a criança, visto que além de correr o risco de ocupar o seu lugar, restringindo o espaço da própria criança na brincadeira, esta atitude o impede de enriquecer a brincadeira com aquilo que ele tem, de fato, a oferecer, isto é, o ponto de vista adulto e de alguém que foi criança. Como escreve o poeta Manoel de Barros, "porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas." Estas "raízes crianceiras" manifestam-se quando o educador lúdico organiza, estrutura e contribui para a brincadeira, em lugar de ser um estraga-prazeres. Aparecem quando tem mobilidade psíquica suficiente para regredir à sua infância e retornar à vida adulta, coordenando estes pontos de vista enquanto se relaciona com a criança real que tem diante de si. Por fim, como defende Brougére (1995), à iniciativa lúdica da criança deve corresponder, em outros momentos, a iniciativa educativa do adulto. Em outras palavras: enquanto se brinca, se brinca. E ao fazê-lo, cresce-se, aprende-se, desenvolve-se em diversos setores. A participação de conteúdos educativos específicos na brincadeira só é admitida mediante a garantia da ocorrência da brincadeira em si, na qual se satisfaz a necessidade de ultrapassar o banal da vida cotidiana para acreditar noutra vida, secreta, irreal, maravilhosa, necessária. A iniciativa educativa do adulto, ao estimular a tomada de consciência das experiências lúdicas que, assim, tornam-se conhecimentos, não pode romper a magia que sustenta a brincadeira, nem que para isso seja necessário aguardar outro momento para intervir. Através de uma relação amistosa e agradável, o educador lúdico mostra verdadeiro interesse pelos feitos e gestos da criança, encorajando-a a ser ela mesma. Conclusão No Japão, há centenas de anos - o que se observa, também, em outros povos - as bonecas são colocadas junto à criança doente; quando a criança 'fica boa', a boneca é queimada ou jogada fora, para que leve embora, consigo, a doença. O que faz uma boneca ser capaz de afastar a doença? Do que decorre a força curativa do brincar? É sabido que os brinquedos e os objetos de culto têm, em comum, a função de serem ponte entre este mundo e o outro mundo. No caso dos brinquedos, conectam o indivíduo tanto à realidade externa quanto a sua realidade interna. Já os objetos de culto almejam representar a ligação entre o mundo físico e o mundo espiritual. A própria etimologia da palavra brincar revela uma ancestralidade mágica e seu caráter de ligação: de origem latina, tanto denominou os pequenos deuses (Brincos) que alegravam e enfeitavam Vênus, voando em torno de sua cabeça, quanto é resultado de diversas transformações pelas quais a palavra "vinculum" passou (Fortuna, 2001). Quaisquer que sejam as explicações para a força curativa dos brinquedos e das brincadeiras, a 'mágica' que perpassa o ato de brincar pode ser explicada pelo fato de que, sendo a brincadeira universal e própria do indivíduo saudável, facilita o crescimento e, portanto, a saúde (Winnicott, 1975, p. 63). O hospital é um lugar onde a doença e a morte são enfrentadas, a partir de conhecimentos e técnicas especializadas, a favor da saúde. Doença compreendida não como oposição à saúde, mas como desestabilização e confronto com o incontrolável e o inesperado, característicos da vida. Ora, a atividade lúdica baseia-se no enfrentamento do inesperado, exigindo capacidade de enfrentá-lo e ensinando como fazê-lo. Deste modo, brincar no hospital ensina a enfrentar a doença promovendo a saúde, especialmente se a saúde for concebida como afirmação da vida. Dolto defende a idéia de que privar uma criança de brincar significa privá-la do prazer de viver (op. cit. p. 110); então, propiciar o brincar equivale a reforçar seu prazer de viver. Contudo, o potencial revolucionário do brincar no hospital é mais amplo e mais fecundo do que o colaboracionismo com que revestem certas práticas lúdicas no hospital, quando a criança é manipulada e enganada através de brincadeiras, a fim de ser submetida mais docilmente às intervenções laboratoriais, clínicas e cirúrgicas, do mesmo modo que sua aprendizagem é disfarçada através de jogos, na escola (Fortuna, 2000). Tampouco a brincadeira aqui defendida reduz-se a um tipo de brincar institucionalizado, no sentido de instituído, dado, estabelecido e, por isso mesmo, estagnado, obtido através de fórmulas prontas. Ao contrário, trata-se de um brincar criativo, transformador e reiteradamente transformado, o que requer ousadia e coragem de inventar, tanto quanto disposição de abrir-se para o novo e o diferente de todos os dias. Meu objetivo, neste texto, foi definir a adequada abordagem lúdica da criança hospitalizada, estabelecendo princípios gerais para sua realização. Insisti no potencial revolucionário que tem a atividade lúdica, especialmente quando praticada no hospital, porque acredito que, para além do atendimento às necessidades clínicas, o hospital deve abrigar e desenvolver práticas identificadas com a afirmação da vida. Brincar no hospital é um modo de reafirmar a vida, porque brincar comprova o milagre da sobrevivência, é uma prova de vida. A Declaração dos direitos da criança da ONU, em seu art. 7o. defende o direito de brincar; a sociedade e poderes públicos devem esforçar-se para favorecer o exercício deste direito, pois brincar associa pensamento e ação, é comunicação e expressão e, finalmente, é um meio de aprender a viver, de proclamar a vida. Um direito que deve ser assegurado a todos os cidadãos, ao longo da vida, enquanto restar, dentro do Homem, a criança que ele foi, um dia, e enquanto a vida nele pulsar. Referências bibliográficas BANDET, J.e SARAZANAS, R. A criança e os brinquedos. Lisboa: Editorial Estampa, 1973. BROUGÉRE, G. Brinquedo e cultura. São Paulo: Cortez, 1995. BROUGÉRE, G. Jogo e Educação. Porto Alegre: Artmed, 1998. DOLTO, F. As etapas decisivas da infância. São Paulo: Martins Fontes, 1999. FORTUNA, T. R. Sala de aula é lugar de brincar? In: XAVIER, M. L. M. e DALLA ZEN, M. I. H. (org.) Planejamento: análises menos convencionais. Porto Alegre: Mediação, 2000. (Cadernos de Educação Básica, 6) p. 147-164 FORTUNA, T. R. Vida e morte do brincar. Espaço pedagógico. Passo Fundo, 8(2): 63-71, dez. 2001. FREUD, S. Escritores criativos e devaneios. In: ---. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: Edição Standard. Rio de Janeiro: Imago, 1976. V. IX. P. 147-158. (Ed. orig. 1907) GALINNO, T. G. O mundo imaginário das crianças: no princípio era o ursinho. Porto: Civilização, 1998. LINDQUIST, Y. A criança no hospital: terapia pelo brinquedo. São Paulo: Scritta, 1993. LINDQUIST, Y. Brincar no hospital. In: FRIEDMANN, A. e outras (org.) O direito de brincar: a brinquedoteca. São Paulo: Scritta, 1992. P. 127-138. LENZI, T. Recreação para crianças em enfermaria pediátrica. In: FRIEDMANN, A. e outras (org.) O direito de brincar: a brinquedoteca. São Paulo: Scritta, 1992. P. 139-149. MACHADO, M. M. A poética do brincar. São Paulo: Loyola, 1998. MORIN, E. Os complexos imaginários. In: PENA-VEGA, A.; ALMEIDA, C. R. S.; PETRAGLIA, I. (org.) Edgar Morin: Ética, Cultura e Educação. São Paulo: Cortez, 2001. PESQUISAS revelam que ludicidade contribui no tratamento de câncer. Disponível em http://www.boldrini.org.br/info_imprensa/noticia11.htm Acesso em 23 nov. 2002 SANTA ROZA, E. Um desafio às regras do jogo: brincar como proposta de redefinição do tratamento da criança hospitalizada. In: SANTA ROZA, E. e SCHUELER REIS, E. Da análise da infância ao infantil na análise. Rio de Janeiro: Contracapa, 1997. P. 161-188. SANTOS, L.; JORGE, A.; ANTUNES, I. (ed.) Comentários à carta da criança hospitalizada. Lisboa: Instituto de Apoio à Criança, 2000. VYGOTSKY, L. S. O papel do brinquedo no desenvolvimento. In: ---. A formação social da mente. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991. (ed. orig. 1933) YAMAMOTO, M. E. e CARVALHO, A. M. A. Brincar para quê? Uma abordagem etológica ao estudo da brincadeira. Estudos de Psicologia, v. 7, n. 1, p. 163-164, 2002. WALLON, H. Do acto ao pensamento. Lisboa: Portugália, 1966. |